O ADEUS DAS PASTAS NEGRAS
Reportagem de Ação por Inês Saldanha
O Largo do Amor de Perdição acolheu, neste domingo (7), os finalistas para celebrarem a Missa da Bênção das Pastas, presidida pelo Bispo do Porto, Manuel Linda.
A tradição sai à rua e consigo arrasta uma chuva humana que banha a cidade do Porto para cumprir o legado da Missa da Bênção das Pastas.
Falta uma hora e meia para o início da cerimónia e o imponente Centro de Fotografia, outrora Cadeia da Relação, já se encontra preparado para acolher os finalistas.
O Largo do Amor de Perdição, envolvido numa urgência acelerada, faz-se notar, contudo a atenção dos presentes é roubada pelo Jardim da Cordoaria, que prepara os futuros hóspedes para uma entrada soberba.
Mães compõem os cabelos vaidosos das filhas, amigos reúnem-se e partilham memórias afogadas em nostalgia e, há ainda quem, se recomponha da Monumental Serenata, realizada à meia-noite do mesmo dia. Um jovem trajado de negro confia a um muro de pedra o seu corpo e, de olhos cerrados, faz da sua capa preta um manto de conforto. Todavia, persistem despertos que se fazem ouvir.
Mariana Ribeiro, aluna do Curso de Enfermagem, sorri demoradamente ao refletir sobre aquele momento. Os seus olhos encontram os da sua mãe para afirmar convictamente que "faz toda a diferença receber esta bênção no final da licenciatura".
Este sentimento de devoção é partilhado por Maria do Céu, avó de Liliana, aluna da licenciatura de Engenharia Química, quando assume que “apenas a fé a ajudou durante estes anos”.
Se por um lado há quem retrate a ocasião com um sentimento de fé, por outro há quem desvende uma certa descrença. “Não sou religiosa, mas venho porque é uma tradição”, assume Maria, finalista do Mestrado em Psicologia.
Entre devotos e céticos, existem comportamentos homogéneos que se manifestam. Rituais inerentes do século XXI que se tornam visíveis quando contamos a quantidade de smartphones erguidos, prontos para tornar aqueles breves instantes eternos. Gravam-se assim recordações e ouvem-se frases impacientes, “Mãe, já chega de fotos”, e outras tantas suplicantes, “Vá lá, só mais uma”.
Redirecionando a perspetiva que os olhos possuem, testemunha-se um céu encoberto e cauteloso. As gaivotas, senhoras da cidade nortenha, rasgam o cinzento penetrante com as suas asas afiadas e tecem danças desconcertantes que preenchem a ausência do astro diurno. O sol, com o seu jeito tímido, teima em não se revelar, talvez porque não queira apropriar-se do protagonismo das estrelas da ocasião.
A espera domina a calçada, mas a vaidade alisa as pedras irregulares que enfeitam a zona histórica do Porto. O tempo voa, mas todos os segundos são ingeridos como se aquela fosse a última refeição.
O amplo largo, futuro pódio da celebração, exibe-se e é reconhecida uma avalanche de pessoas eufóricas que se apressam a dar os últimos retoques e a aperfeiçoar todos os pormenores.
Vozes melódicas ouvem-se nas profundezas do recinto. Numa busca pela origem dos cânticos celestes admira-se o ilustre palco onde se desenrolará a eucarística. O coro afina o tom, os técnicos correm cautelosamente de um lado para o outro e grades robustas são colocadas metodicamente para delinear os respetivos lugares. É uma azáfama.
Do lado esquerdo, junto ao palco, avista-se uma tela gigante, onde está escrito a letras gordas “Queima 2023”, e uma grua de televisão que alerta os mais absortos para a transmissão em direto da ocasião.
“Peço a todos os finalistas que se dirijam para o centro”, explode uma voz ordeira. “Este momento é para vocês.”
Perante uma cidade inquieta, capas negras esvoaçam e atropelam-se cuidadosamente. Os universitários de pastas amparadas contra o peito juntam-se na zona previamente estipulada. O sentido de orientação hoje faz-se com fitas. De mãos erguidas os jovens sinalizam os seus lugares e os mais alheados seguem o rasto colorido.
Passam-se quinze minutos e aquele timbre disciplinado corrompe outra vez, “Peço novamente a todos os estudantes que se dirijam para o centro. Temos horários para cumprir”.
O vento sopra revoltado e empurra assim o resto dos fugitivos. O cinzento do pavimento começa a tornar-se impercetível, dando lugar a um mar repleto de ondas sombrias.
Agora mais composto, o Largo do Amor de Perdição, evidencia uma plateia deslumbrante, organizada num acordo metódico de lugares. Em frente do palco conta-se um bom par de cadeiras reservadas para as figuras célebres que a ocasião exige. O Reitor da Universidade do Porto, António Sousa Pereira, a vereadora da Câmara Municipal da cidade invicta, Catarina Araújo e Pedro Nuno Teixeira, Secretário de Estado do Ensino Superior, são alguns dos nomes que preenchem os assentos régios.
Entre preparativos e ajustes, uma hora e meia já passou.
Soa uma entoação sublime que alerta para o início da homilia. Três servidores, orgulhosamente vestidos de branco, abrem caminho entre os estudantes. O Bispo do Porto, Manuel Linda, faz-se descobrir ao longe com o seu imponente solidéu e caminha em sintonia com a música celestial.
Uma voz feminina e ponderada discursa juntamente com a melodia, “Um particular obrigada a todas as mães” e espalha-se assim a lembrança de que neste domingo também se celebra o Dia da Mãe. Enquanto o corpo religioso ocupa os devidos lugares junto do altar improvisado, uma nova canção, por sinal mais juvenil, emerge provocando sorrisos nos rostos do auditório. A alegria é sentida e a vaidade não pode ser negada.
Reconhecem-se alguns atrasados por entre a multidão. Correm freneticamente e juntam-se entre os pares. Agora sim, com os devidos atrasos prestados, podemos assumir que é realmente uma cerimónia portuguesa.
A missa começa. “Em nome do pai, do filho e do espírito santo”, profere o Senhor Bispo. “Ámen”, respondem os fiéis.
Após uma introdução elaborada, confessam-se os pecados com uma oração clássica cristã e em gesto comum cruzam-se as mãos junto ao peito.
“Glória a deus” é a harmonia que se segue e de pastas ao alto descobrimos um dilúvio de cores festivo.
As faixas amarelas aguerridas correspondem a Medicina, as intensas azuis-escuras a Letras e as de vermelho imponente a Direito.
Mais discretas e introvertidas, encontram-se as cinzentas de Belas-Artes, que se combinam com as roxas penetrantes de Farmácia e com as verdes vigorosas de Desporto.
As fitas laranjas vibrantes evidenciam os finalistas de Psicologia e Ciências da Educação, enquanto a cor de tijolo distingue os de Engenharia.
Os alunos de Ciências são representados pelas azuis-claras delicadas e há ainda cores que se aliam entre si, oferecendo dinâmica à nossa audiência irreverente.
Amarelo e azul são os tons de Biomédicas. Laranja e amarelo identificam os finalistas de Medicina Dentária, enquanto as fitas vermelhas e brancas diferenciam os de Economia. A atrevida combinação entre o amarelo e o verde personifica os de Ciências da Nutrição e Alimentação.
Tomam-se as rédeas do evento e este prossegue. Lê-se o ato dos apóstolos, cantam- se salmos e interpretam-se epístolas.
O céu agora está descoberto, inspirando os rostos sorridentes e guiando os olhos marejados.
Manuel Linda toma a palavra e dirige-se “de uma forma especial aos finalistas”. “É um espetáculo belo, entusiasmante, que se grava nos olhos e no coração”, diz o clérigo ao descrever o cenário que se impõe diante da sua visão.
Como se aquelas palavras sacerdotisas fossem uma ordem para libertar as emoções, até então aprisionadas nas almas académicas, observam- se faces vestidas de véus lacrimais.
Referindo a Jornada Mundial da Juventude, que se irá realizar de 1 a 6 de agosto, o Bispo apela “Vamos ensaiar uma igreja para o nosso tempo. Mais simples, mais acolhedora, mais afável. Uma verdadeira igreja.”
“Para isso teremos de rever os nossos critérios, as nossas palavras e atitudes, os gestos para revelarmos Jesus”, acrescenta.
Quereis fazer da próxima JMJ um ensaio geral para esta mudança? Participai dela. A igreja precisa de vós!”, desafia o sacerdote.
Coloca-se termo à Liturgia da Palavra, a segunda parte da eucaristia. Prossegue-se sem demoras a preparação das oferendas.
Uma dezena de discípulos navega entre o oceano mortal, acolhendo os depósitos dos benfeitores presentes que serão entregues ao Fundo de Solidariedade da Pastoral Universitária.
Findam-se os donativos, é hora de partir o pão em honra do Supremo Ser. “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho do homem, que agora vos apresentamos e para nós se vai tornar pão da vida!”, proclama Manuel Linda. “Bendito seja Deus para sempre!”, responde a assistência.
Sem demoras, são distribuídos guarda-chuvas pelos acólitos. Os assistentes cristãos devem usá-los para proteger os ministros da eucaristia e as taças repletas de hóstias. Formam-se duplas, repartem-se cálices e cumpre-se o rito da comunhão.
Passam-se cerca de dez minutos e os fiéis terminam de comungar o corpo de Cristo.
Arruma-se a mesa, limpam-se os vestígios e coloca-se término a mais um estágio da homilia.
Face a uma multidão ligeiramente cansada e atordoada pelas emoções, avança-se sem delongas para a fase terminal do serviço religioso. Finalmente, os finalistas sentem que chegaram ao seu destino. O ato que dá, ano após ano, razão de ser àquele dia está prestes a ser concretizado. O Bispo do Porto desce do altar para benzer as pastas dos estudantes.
Cobre-se o caminho que o cardeal irá pisar com as capas negras. Manuel Linda soleva o hissope e honra um dos legados mais arcaicos da vida acadêmica. Os estudantes aglomeram-se nas margens do trajeto e rompem-se as composturas. Sentimentos avassaladores caracterizam a circunstância. Descrevem-se lágrimas desmedidas, abraços de conforto e sorrisos que não têm dimensão. O presbítero, com uma expressão espirituosa, faz as delícias daqueles que deram o corpo às balas no decorrer dos anos passados.
A plateia outrora organizada, dispersa e encontra familiares, amigos e amantes que anseiam socorrer toda aquela felicidade. É com esta energia tocante que se encerra a Missa da Bênção das Pastas, no Porto.
É “o fim de uma das etapas mais importantes”, mas também o início de uma nova jornada. É a porta que se abre para um mundo cheio de oportunidades. É a recordação que nunca será esquecida e a certeza de um dia aconteceu.