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A morte dos nossos dias

A morte... essa inimiga que nos apanha ao virar da esquina ou no sofá lá de casa.

A morte corrompe qualquer sentido descrente, aparece retratada com uma foice, com um temível manto negro, com uma face arruinada e marginal, mas é sem grandes ornamentos que despedaça o tecido que nos envolve o coração.

Ela é tudo o que mais tememos e é também o que mais temos em comum.
Há algum tempo, li um livro, escrito por Saramago, em que ele expunha, desassombradamente, este tema mórbido.

A “morte” segundo Saramago, era uma personagem, legítima, justa, racional e fazia algo que eu, pessoalmente, aprecio. Ela escrevia cartas para aqueles que estavam ‘com os dias contados’. Cartas, essa forma ancestral de comunicar, esse meio caído em esquecimento.

A morte, enquanto personagem fictícia, era ousada. Ela escrevia a sua correspondência num audacioso papel violeta, imagine-se só. Todavia, não despertava o absurdo, nem menosprezava o sofrimento alheio. A morte dos nossos dias é diferente.

A dor infernal que esta nos causa é partilhada, no mundo atual, através de meios digitais que têm uma certa tendência para enfatizar a dificuldade humana para raciocinar.

A dor contemporânea tende a ser demonstrada em praça pública, que é como quem diz, no mural do Facebook ou nas histórias do Instagram. E vale o ressalvo que, para muitos entendidos, apenas desta forma essa mesma dor é credível e digna de respeito.
Recentemente, mas já há algum tempo, tive o infortúnio de ver a morte, não da forma que a veem aqueles que ao seu lado caminham, mas de soslaio lá nos encontramos.

Estava ela, toda senhora de si, certa da sua missão e eu, completamente desfeita, nem conseguia formalizar os gritos que se aprisionavam na minha laringe. Contorcia-me, portanto, em soluços humilhantes capazes de a fazer voltar-me a cara, como forma de desprezo.

Quando lá me recompus, tive de fazer aquilo que de mais humano nos obriga a morte, arrumar a vida de quem já cá não está.

Foi então, rodeada dos meus afazeres, que me confrontei com as tarefas modernas que esta nova realidade digital nos proporciona, como eliminar as redes sociais do falecido.

Qual não foi o meu espanto quando vi mensagens dirigidas ao próprio defunto. Mensagens essas que expressavam o "lamento pela sua partida" e sublinhavam as "saudades que iria deixar", como se ele, o morto, pudesse retribuir tal atenção. Já para não referir, as várias publicações em sua homenagem, acesas declarações escritas pelos donos dos perfis e dirigidas ao próprio sucumbido.

Ao que parece, as redes sociais servem para comunicar com o além, um verdadeiro milagre tecnológico!

Por favor, caros leitores, não subestimem a minha dor quando vos confessar que não tenho o hábito de partilhar os meus sentimentos mais íntimos na internet, talvez eu seja um pouco arcaica. Na verdade, eu acredito que há certas homenagens que apenas dizem respeito aos vivos.

Não interpretem a minha atitude como condescendente, encarem mais este comportamento como uma demonstração de que a raça humana ainda pode ser sensata.

Nem tão pouco pensem que aquilo que vos escrevo é um julgamento, eu percebo muito bem que a humanidade tem a necessidade de se exprimir, somente penso que deveria ser mais seletiva no meios que escolhe para o fazer.

Afinal de contas, o descanso eterno deveria significar isso mesmo, repouso, tranquilidade.

Mas até para estar morto, hoje em dia, é preciso ter sorte, não vá o diabo tecê-las e existir WiFi no céu e smartphones a assinalarem notificações do Facebook a dizer que alguém nos identificou numa publicação.

Por Inês Saldanha

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